quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Engraxando à janela

Um homem engraxava um sapato preto à janela. Um único sapato pendurado à janela, e ele com afinco, sobrolho franzido, a escová-lo como se aquilo fosse o centro do mundo. A cara dele secara como a de um pescador e o sapato reluzente, hidratado, parecia estranho naquelas mãos. A casa, como o seu rosto, já tinha perdido a tinta mas, tão certo como o homem ter o par do sapato, um dia fora amarela. Atrás dele passou de repente a sombra de um gato, ou talvez essa parte fosse imaginação. Mas ele estava lá, pendurado à janela. E eu passei.

Esmioçar o mundo aos 10 anos

"-Porque é que a União Europeia não dá o dinheiro de que não precisa aos governos dos países mais pobres para eles darem às pessoas que estão desempregadas?", disse Camila, 10 anos, a ouvir as notícias enquanto desenhava.
Ainda pensei em argumentar, mas decidi ficar calada. É melhor poupá-la a cair no precipício de se tornar uma Mafalda e tornar a nossa vida ainda mais parecida com uma sucessão de bandas desenhadas.

sábado, 14 de novembro de 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Dinheiro é tempo

Para saber que estará tudo limpo e arrumado quando finalmente chegar. Que as crianças serão educadas mesmo se me atrasar. Que o lazer dos outros não desaparece se eu tiver de ficar. Para desacelerar a cabeça e finalmente parar de pensar. Raios, detesto quando me sai tudo a rimar.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Croissants

Uma gargalhada vibra no ar e alonga-se mais do que uma expiração deveria poder resistir. Ela agita os cabelos negros, e os seus quase caracóis quase encaracolam de vez.
-“Lembras-te?” – diz, enquanto os olhos brilham. Lembro-me, claro, ela nunca mo deixou esquecer, com aquela capacidade de reter os mínimos acontecimentos.
Era de manhã e na confusão ensonada da cozinha o cão deambulava para lá e para cá ou estacionava onde fosse mais inconveniente. Em frente à porta do frigorífico. Junto à bancada da torradeira. Barrando o acesso à dispensa.
Despenteada e com o roupão rosa curto demais, ela lutava para manter os olhos abertos e encarar o medo da nova escola que a esperava, tão longe do aconchego da cama. E eu preocupada: “ queres um iogurte? Queres uma torrada?”. Que não, que não. Só queria que a deixassem. E eu, galinha, a querer encher-lhe a alma de comida, com a desculpa de que tomar o pequeno almoço é saudável: “Queres um croissant?”.
Os croissants tinham entrado lá em casa via Paris, para prolongar o sabor da viagem de Verão em que decidimos que vale a pena escolher os hotéis segundo o pequeno-almoço e não o quarto. Infelizmente mais tarde saíram da lista das compras, vítimas da dieta e da responsabilidade.
Mas voltemos àquela manhã com cheiro a café e aos croissants que estava prestes a preparar, um para mim e talvez um para ela, quando me sobressaltei com um grito.
-“É booooom!” dissera uma voz grave mas surpreendentemente alta. Virei-me. Os caracóis dela agitavam-se como agora. O husky opinara num uivo incrivelmente próximo da voz humana. E não é que tinha bom gosto?