quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Dormir à gargalhada

Nunca me tinha acontecido aperceber-me do meu riso enquanto dormia. É frequente acordar com o som da minha própria voz, porque falo durante o sono. Na verdade, berro durante o sono porque é frequente sonhar que estou a discutir, de forma muito pouco diplomática, com alguém. Porém, desta vez foi com o som das minhas gargalhadas que despertei.

No sonho, a minha mãe olhava embasbacada para uma mulher que ostentava um colar que parecia saído de uma exposição das jóias da coroa. Eram grandes quantidades de pedras preciosas e ouro sobre uma vulgar t-shirt verde, quase masculina. Não foi a mulher que me fez rir, mas sim a expressão da minha mãe, cujas sobrancelhas erguidas deixavam no ar a interrogação de se aquilo seria apropriado.

A situação não é particularmente divertida mas pelos vistos no mundo dos sonhos é-me permitido rir só porque sim. Só por saber o que se passa na cabeça da minha mãe como se ela tivesse uma legenda a passar por baixo.

Fora do mundo dos sonhos, a mesma mulher, a mesma expressão, não teriam provocado aquela gargalhada incontrolável. Passei alguns minutos a tentar perceber porque tinha tido aquele sonho. Até que decidi que devia estar a ser contagiada pela inocência da Rosa, que no fundo na minha barriga se ria também, sem fazer barulho.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Melhores Amigos

Com as férias do Verão a aproximarem-se, vieram-me à cabeça aquela antigas férias longe de casa, quando a realidade era uma coisa distante e o cheiro a Verão não nos saía do corpo durante muito, muito tempo. Nunca mais houve férias assim. Por um lado, porque a realidade nunca voltou a ficar tão longe. Mas sobretudo porque nunca mais como nesse tempo voltei a sentir a confiança de ter uma melhor amiga a meu lado.
Depois, ao ler ontem o blog de uma miúda que deve ter uns 13 anos, brasileira, e que passou um mês num campo de férias, revivi a explosão de emoções que uma simples temporada longe de casa pode trazer nessa idade. Feliz, transformada e ligada aos amigos como nunca, ela estava pronta para olhar para alguém e ler-lhe o pensamento, rir sem precisar de ouvir a piada, partilhar a sua casa, a sua roupa, a sua família, a sua comida e o seu dinheiro, como se tudo fosse absolutamente natural.
Mas não é natural. É extraordinário, e quando acontece seria fantástico que pudesse durar para sempre.
Agora, que chegou a vez de a minha filha começar a viver algumas destas coisas, descobri de repente a falta que tudo isto me faz. Poder confiar num melhor amigo não é uma coisa de crianças. Tenho saudades dos melhores amigos, aqueles que não vivem do Facebook e sem os quais não tomamos uma decisão importante. Pensei que perder a cumplicidade era uma consequência natural de se ser adulto. Não é. Viver rodeado de gente que é incapaz de cumplicidade, sim.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Há neve no meu jardim

Eram 7h30 de domingo e pensei que o sono ainda não tinha abandonado os meus olhos. Esfreguei-os, certa de que aquilo ia passar. Mas não passou. Continuava a ver a neve bem branquinha lá fora, cobrindo o relvado outrora verde do meu jardim. Abri a janela e saí para a rua. Tudo branco.
Ao fundo do jardim estava o Inverno. Esta pode parecer uma frase poética, mas não é. Inverno é o nome do nosso cão, um huski que oferecemos à Camila e que às vezes tem alguns... problemas de comportamento. Estava com aqueles olhos arregalados e aquela corrida algo hesitante de quem tem um peso na consciência (sim, os cães tabém têm disso). Desta vez não tinha arrancado plantas, nem cavado buracos no jardim, nem enterrado as meias deixadas no estendal, nem roído ferramentas preciosas. Tinha simplesmente rasgado uma almofada cujo conteúdo de penas estava uniformemente espalhado pelo relvado, em leves camadas.
"Bem, pelo menos desta vez foi original", pensei alguns segundos depois de deitar as mãos à cabeça. Agarrei numa vassoura e num saco de plástico e comecei a varrer as penas em montinhos e a apanhá-las. O Inverno achou isto engraçado e começou a pular à minha volta, espalhando-as ainda mais. Dali a pouco começou a levantar-se vento e pensei na cara dos meus vizinhos que, olhando pela janela, estivessem a ver milhares de penas a voar erraticamente, como flocos de neve. Que forma divertida de começar o dia! Mas não tão divertida como a do António que, tendo-se levantado um pouco mais tarde que eu, entrou na cozinha e pensou que eu estava a "lavar o relvado com detergente e uma esfregona". Às vezes não sei o que é mais preocupante: ele já ter chegado à fase em que me julga capaz de lavar o relvado, ou as coisas verdadeiramente estranhas que de facto acontecem lá em casa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Cara de catano

Não foi um insulto, mas antes um bom dia, como quem diz que faz bom tempo. Bom dia, ó cara de catano, disse ela, 84 anos e a roupa preta a luzir à luz da lareira acesa bem cedo na cozinha. A pureza em pessoa. Não imaculada, que a vida foi dura para isso, mas ainda assim a pureza em pessoa. Nós rimos, vindos de Lisboa e pouco habituados às modas daquelas partes. E ficámos três dias a ouvir histórias de antigamente e de agora, sobre uma família que aos poucos começa a ser mais que um monte infindável de nomes e a adquirir rostos e lugares na árvore genealógica. Também lá estavam os outros tios, numa noite em que quatro irmãos se juntaram com saudade de outros sete. E eu a ver filmes imaginários sobre crescer no campo de uma forma tão diferente da minha.
Enquanto lá estivemos nevou, e de manhã a Nica entrou coberta de branco, ela que é uma gata preta retinta. Gozámos a nossa sorte e os montes de neve como se vivêssemos um milagre. Entre outros milagres que vivemos agora. Comemos bifanas grelhadas à lareira e grelos da horta e bolos feitos com a receita da avó. E voltámos com o carro cheio e as miúdas a rirem desenfreadas no banco de trás. Aos pés da Josefa, suculentos requeijões esperavam a sua hora, e por trás da tranquilidade que ela sempre trás no rosto escondia-se uma suave felicidade.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Uma década em ti

Já passava da uma e eu sem dormir. Pesava-me aquela década na imaginação. Tentava recordar-me do que fora, do que me marcara. Descobrir porque passara tão depressa. A meio caminho dos quarenta o tempo já escorre entre os dedos e há noites assim, em que nada mais há a fazer que procurar provas de que tenha valido a pena. Por um minuto, não encontrei nada. Mas depois lembrei-me das tuas pernas compridas. Do teu cabelo irrequieto. Das coisas que escreves e cantas. Dos teus desenhos, das tuas opiniões. De repente, estava lá tudo. E soube o que tenho andado a fazer.