sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Croissants

Uma gargalhada vibra no ar e alonga-se mais do que uma expiração deveria poder resistir. Ela agita os cabelos negros, e os seus quase caracóis quase encaracolam de vez.
-“Lembras-te?” – diz, enquanto os olhos brilham. Lembro-me, claro, ela nunca mo deixou esquecer, com aquela capacidade de reter os mínimos acontecimentos.
Era de manhã e na confusão ensonada da cozinha o cão deambulava para lá e para cá ou estacionava onde fosse mais inconveniente. Em frente à porta do frigorífico. Junto à bancada da torradeira. Barrando o acesso à dispensa.
Despenteada e com o roupão rosa curto demais, ela lutava para manter os olhos abertos e encarar o medo da nova escola que a esperava, tão longe do aconchego da cama. E eu preocupada: “ queres um iogurte? Queres uma torrada?”. Que não, que não. Só queria que a deixassem. E eu, galinha, a querer encher-lhe a alma de comida, com a desculpa de que tomar o pequeno almoço é saudável: “Queres um croissant?”.
Os croissants tinham entrado lá em casa via Paris, para prolongar o sabor da viagem de Verão em que decidimos que vale a pena escolher os hotéis segundo o pequeno-almoço e não o quarto. Infelizmente mais tarde saíram da lista das compras, vítimas da dieta e da responsabilidade.
Mas voltemos àquela manhã com cheiro a café e aos croissants que estava prestes a preparar, um para mim e talvez um para ela, quando me sobressaltei com um grito.
-“É booooom!” dissera uma voz grave mas surpreendentemente alta. Virei-me. Os caracóis dela agitavam-se como agora. O husky opinara num uivo incrivelmente próximo da voz humana. E não é que tinha bom gosto?

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